A
paisagem é de mar em pleno Cariri paraibano. Sol forte, lanchas e jet
skis na água, banhistas, peixes, passeios de barco e até ilhas com
casas de luxo. Se fosse no Litoral, a cena seria perfeita.
Mas o cenário é observado no Açude Epitácio Pessoa,
localizado no município de Boqueirão, no Semiárido paraibano (a 161 Km
da Capital). Segundo maior reservatório do Estado, o açude de
Boqueirão, como é conhecido, abastece pelo menos 18 municípios e sua
poluição ameaça a saúde de mais de 500 mil pessoas. Cerca de 50% das
cidades abastecidas pelo Boqueirão registraram casos de cólera, doença
diarreica infecciosa grave que pode levar a morte.
Dados do Ministério da Saúde (DataSus) revelam que a
Paraíba registrou, no total, 281 internações hospitalares por cólera,
em 53 municípios, somente no período de janeiro de 2008 a agosto deste
ano, com uma morte. Os gastos com essas internações somam mais de R$
94,5 mil. O segundo maior reservatório abastece, inclusive, a segunda
maior cidade da Paraíba – Campina Grande – que registrou o maior número
de internações por cólera este ano (13).
No grande “mar de Boqueirão”, duas realidades
distintas: de um lado, praticantes de esportes náuticos, ilhas e
mansões dentro do reservatório poluem suas águas com esgotos que correm
“mar” adentro. Do outro, mais de 100 famílias vizinhas desse grande
açude estão consumindo suas águas, sem tratamento. Crianças adoecem com
diarreias.
As águas do Boqueirão (com capacidade para armazenar
411,6 milhões de metros cúbicos) também estão sendo contaminadas por
agrotóxicos devido às plantações próximas, por fezes de animais que
tomam banho dentro e banhistas, que jogam lixo e poluem.
Margens
Na última terça-feira, a reportagem visitou o
Boqueirão e as famílias que moram na chamada “Vila do Sangradouro”,
próximas as suas margens. Essa comunidade também convive no inverno com
o risco de inundações quando o reservatório atinge sua capacidade
máxima. “Em 2008, a água chegou no quintal de casa. Todas as crianças
daqui tiveram diarreia e baixaram o hospital”, afirmou o agricultor
José de Arimatéia Oliveira santos, 37 anos, que mora com a mulher,
Nilda, 27 e os quatro filhos.
“Quando tem o hipoclorito de sódio, a gente bota na
água, mas quando está faltando como agora, a gente coloca só água
sanitária”, disse o agricultor. Maria Jaqueline e os irmãos José Luan,
4; Francisco, 10 e Adeildo, 14, já aprenderam a conviver com isso.
“Hoje, não tem água”, disse Jaqueline, constatando que não havia água
na torneira. As águas do Boqueirão vêm para a comunidade através de uma
bomba, que joga dentro de uma caixa e distribui para as casas.
A família da agricultora Laudeci Paulino da Silva,
44 anos, que tem 6 filhos, bebe água sem qualquer tratamento. “A gente
não coloca esse negócio na água porque é muito ruim. As crianças
reclamam do gosto. Então, não boto nada”, revelou Laudeci.
Dentro do Boqueirão, um dos filhos de Laudeci, o
garoto Carlos Antônio, 10 anos, retirava em um balde a água que ele e a
família bebem, sem nenhum tratamento. Sem se dar conta dos riscos, ele
ainda dividia espaço com um jet ski cujo condutor ignorava a presença
do menino.
Mansões e até marina na ‘praia do Interior’
Dentro da comunidade, em meio à pobreza e a paisagem
seca do Cariri, existe uma marina, próxima à margem do açude. As ilhas
que se formaram ao longo da barragem e abrigam casas se estendem até o
vizinho município de Cabaceiras e chegam a valer mais de R$ 1 milhão,
no reservatório reconhecido como uma “verdadeira praia do interior”.
“Indo de barco até Cabaceiras, você enxerga riqueza
e mansões que não vê em todo lugar e nem na Capital. É um descaso com a
saúde. Vivi minha infância nas margens do Boqueirão e, naquela época,
havia respeito e preservação. Hoje, o açude é de empresários”, afirmou
o comerciante José Vital. “Por causa desses problemas e da poluição, a
quantidade de cloro que se coloca na água é bem maior. Às vezes, a
gente abre a torneira e a água sai quase branca como leite. O cheiro é
de cloro puro”, acrescentou.
Falta tratamento em 17 cidades da PB
Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, o professor
Ulisses Confalonieri, doutor em Doenças Tropicais e uma das maiores
autoridades na área, disse que é preciso fazer uma coleta no açude de
Boqueirão para saber o grau de contaminação da água e constatar se a
bactéria da cólera está presente. Ele acredita que os casos de cólera
registrados na Paraíba são endêmicos e de pouca agressividade. Na
Paraíba, 833 mil paraibanos não têm acesso à água tratada através da
rede geral, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE/Pnad 2009). Além disso, moradores de 17 municípios
consomem água sem nenhum tipo de tratamento, segundo a Pesquisa
Nacional de Saneamento Básico 2008, do IBGE.
“A questão crítica na Paraíba é o saneamento básico.
A cólera e outras doenças diarreicas estão associadas à qualidade da
água, falta de higiene, esgotos e lixo. É preciso saber se a água que
está sendo consumida é segura”, afirmou Ulisses Confalonieri. Ele
explicou que podem ocorrer casos de cólera no contexto de outras
doenças diarreicas causadas por saneamento e higiene deficiente. “Não
tenho conhecimento de casos recentes de cólera no Brasil, em proporções
epidêmicas. Esses casos devem ser de uma cólera endêmica, porque se
fosse epidêmica estaria se espalhando com maior rapidez e matando
muitas pessoas”, esclareceu.
A cólera foi reintroduzida no Brasil em 1991, a
partir da explosão epidêmica em vários países da América do Sul,
segundo o Ministério da Saúde. “A cepa ou variante que entrou no entrou
no País em 1991 era de pouca agressividade. Essa cepa da Paraíba pode
ser remanescente daquela e um foco endêmico residual. Para saber se é a
mesma teria que fazer a coleta da água para descobrir a tipagem da
bactéria”, explicou.
MS lança nota técnica
Um informe técnico sobre a cólera foi divulgado pelo
Ministério da Saúde (MS) no último dia 29 devido ao surto da doença,
confirmado em setembro passado, no Haiti, com mais de 3,3 mil casos
confirmados e pelo menos 259 óbitos naquele País. O informe técnico
traz orientações às Secretarias Estaduais de Saúde, a profissionais e
viajantes entre o Brasil e áreas afetadas pela doença.
Confalonieri não descarta a possibilidade desse tipo
de cólera mais agressiva entrar no Brasil. “Quem for para o Haiti deve
ter cuidado. O risco sempre tem, porque hoje, não tem mais polícia
sanitária. Isso acabou. As fronteiras são permeáveis. Então, possui o
risco de introdução da cólera. É importante discutir o saneamento
básico”, alertou o especialista.
Do JoazeiroNews com CP - Henriqueta Santiago